Estou lendo o livro "A Máquina do Tempo", de H.G. Wells, bem diferente do filme de 2002. Estou numa parte em que o Viajante do Tempo vai parar no ano 802.701 da Era Cristã (ou Era Comum) e descobre que a humanidade foi se modificando até dar origem a duas raças ou espécies diferentes: os Eloi e os Morlock. Os Eloi descendem dos humanos abastados e bem vividos, que dominaram durante muito tempo sobre os Morlock. O resultado disto é que os Eloi viviam durante o dia, aproveitando as paisagens, as frutas, o sol e as belas roupas, viviam felizes e abastecidos; enquanto que os Morlock viviam no subsolo, tinham aparência terrível, se alimentavam dos Eloi e eram abomináveis.
H.G. Wells diz que a sociedade se dividiu assim pois o domínio dos Eloi foi possível por fazer os Morlock acreditarem que o lugar deles era o subsolo, que eles não tinham chance na luz, que eram criaturas abomináveis. Os Morlock acreditaram e se tornaram no que disseram que iriam se tornar.
Pensei na "cultura" do funk carioca nos dias de hoje. O funk carioca foi declarado movimento cultural desde 2009 e pode receber verbas governamentais para promover-se. Acontece que o funk carioca não é uma cultura, ele é uma anticultura. Um artista de funk geralmente não sabe cantar, compor ou tocar qualquer instrumento, salvo raríssimas exceções. As "músicas" não tem melodia ou harmonia, que, junto com o ritmo, são elementos essenciais para serem chamados de música. Num resumão geral, para ser um funkeiro de sucesso é necessário apenas conhecer as pessoas certas na mídia e pagá-las em dia.
Ao colocar o funk carioca no patamar de cultura, estamos criando Morlocks. Pessoas que não se interessam por estudar, melhorar, aperfeiçoar e buscar cultura; pessoas rasas, que mal sabem utilizar a língua portuguesa para passar o pouco conteúdo que tem. E, mesmo assim, são consideradas pessoas de sucesso por lotarem bailes. Vão ficar no subsolo por toda a vida, precisam sair para ver o sol e as cores que a cultura pode dar. Precisam entender o por quê dos acordes de um violão e o uso correto das concordâncias verbais.
Só que a sociedade os trata como Morlocks: ensina-os a continuarem sendo assim, mente a eles dizendo que isto é cultura. A sociedade está fazendo como os Eloi e criando os seus próprios problemas futuros. Bem diferente do movimento do funk que se iniciou nos EUA, com James Brown, The Commodores e Earth Wind & Fire, entre outros, nosso funk não tem nenhuma qualidade musical aparente, não há destaques virtuosos, não espanta quem ouve. E não estou falando somente do conteúdo sexual das letras, porque o funk dos anos 60 e 70 também era carregados de temas sexuais (um dos maiores sucessos de James Brown foi "Sex Machine"), mas sim de músicos que mesmo tendo gostos diferentes nos fazem admirá-los (não gosto de Axé Music, mas reconheço que Ivete Sangalo é uma grande cantora).
Precisamos parar de criar Morlocks. Precisamos deixar de ser Eloi. Precisamos dar um lugar ao sol para todos e que todos possamos, juntos, ver todas as cores.
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