Sobre um Passado Não Tão Distante

Muitas pessoas gostam de bater no peito e dizer que pertencem a este ou àquele grupo de cristãos. Pensam ser os guias morais e detentores da teologia mais sacra do mundo. Muitos acusam os outros, dizem que a forma de pensamento dos outros é equivocada e tendenciosa. E, pior, gostam de evocar seus títulos e citar os seminários onde estudaram, com suas graduações, como se isso fosse alguma coisa pela qual valesse a pena discutir.

Vou contar uma história do Século XIX para você pensar um pouco e fazer suas comparações com o Século XXI.

Uma das questões que mais chacoalharam as igrejas cristãs no Século XIX foi o debate sobre se um cristão deveria ou não possuir escravos. No início do século, a Inglaterra teve deflagrado um movimento abolicionista muito forte e um dos nomes mais proeminentes deste grupo era William Wilberforce. Rapidamente, o assunto foi se espalhando e se tornando global, mesmo sem o apoio do Facebook.

Quando chegou aos Estados Unidos, houve um verdadeiro pandemônio. Livros foram escritos e associações foram criadas para defender a abolição ou para refutá-la. A Guerra Civil seria o ápice desta discussão e as igrejas não poderiam ficar de fora. Os principais líderes destas igrejas começaram a produzir suas linhas de pensamento e publicá-las.

A Igreja Metodista foi a primeira a criar um grupo denominacional para estudar a questão da abolição da escravatura em solo norte-americano. A Igreja Presbiteriana se dividiu em "Velha Guarda" e "Jovem Guarda", sendo a Velha Guarda formada por ministros religiosos que trabalhavam em prol dos possuidores de escravos. E a Igreja Batista, maior denominação protestante dos Estados Unidos até hoje, simplesmente rachou. Vou falar um pouco mais sobre a Igreja Batista porque pertenço hoje a este grupo.

As igrejas batistas do norte dos EUA, abolicionistas, formaram a Convenção Batista Nacional. As igrejas do sul, por sua vez, criaram a Convenção Batista do Sul dos Estados Unidos. Os batistas sulistas acusavam os nacionais de adotarem um comportamento liberal e fora dos padrões das Escrituras Sagradas. Quando a questão atingiu a política nacional e a guerra aconteceu, as discussões foram se acalorando até o fim das relações entre as duas denominações.

Nas igrejas sulistas, era muito comum utilizar a Bíblia para dizer que os negros não eram realmente humanos ou, em muitos casos, eram considerados humanos amaldiçoados. Tomavam a cor da pele por sinal de falta de caráter, de inteligência e de salvação. Negros não tinham direitos, inclusive de prestar culto. Os sulistas, porém, continuaram seu trabalho e sua denominação crescia, o que eles consideravam um sinal de que estavam certos. Enviaram missionários, inclusive para o Brasil.

Após a derrota na guerra e a libertação dos escravos, iniciou-se o movimento de segregação. Negros não se misturavam com brancos. Não podiam entrar em igrejas de brancos. Não podiam andar na calçada, não podiam estudar nas escolas, não podiam fazer quase nada. Muitas igrejas educadamente convidavam um negro a se retirar quando este resolvia participar de um culto de brancos.

Após a luta pelos direitos civis, cujos direitos dos negros e mulheres foram assegurados somente após a metade do Século XX, os negros se tornaram quase que totalmente livres. Ainda há o que ser feito, mas as atrocidades do passado ficaram para trás. Hoje, possuir um escravo é uma coisa impensável para qualquer pessoa de bem.

Cito estas questões para falar um pouco sobre o fenômeno de manter a religião rodando mesmo em detrimento das pessoas. Ao contrário do que muita gente pensa, manter uma religião exige muito esforço e decisões delicadas. A maioria das brigas e divisões em igrejas acontece por coisas ligadas à instituição e não necessariamente à vida comunitária: dinheiro, estatutos, trabalho do pastor, construção de templos.

Essa luta por manter o status quo se evidencia nos discursos denominacionais. O gráfico abaixo mostra uma contagem de palavras simples que fiz em um jornal recente ligado a uma importante denominação evangélica brasileira:


Citações - Tópico
149 vezes - Nome da Denominação
196 - Palavra "Igreja"
199 - Palavra "Pastor"
21 - Palavras "Bíblia" e "Escritura"
29 - Palavras "Jesus" e "Cristo" ("Jesus Cristo" foi contada como duas palavras)
122 - Palavra "Deus"
5 - Palavra "Espírito"

A Bíblia nos ensina que "a boca fala do que está cheio o coração" (Mateus 12.34). Ainda estamos presos na luta pela sobrevivência da instituição, sem nos preocuparmos com suas bases, solapadas cada dia mais. Contei várias outras palavras que não estão no gráfico. "Amor" é citado apenas 30 vezes. "Jejum" sequer é citado. A preocupação é que a instituição continue funcionando.

Assim acontece em muitos e muitos lugares. O Evangelho está sendo esquecido para dar lugar a tantos outros projetos sem amparo espiritual. Muito se fala de costumes e de tradições (ou da quebra delas), mas pouco do amor ao próximo e dos ensinos de Jesus. É muita teologia e pouco testemunho. É muita panela entre iguais e pouca interação entre os diferentes.

Existe muita gente buscando o acerto também. Existe gente fazendo o que precisa ser feito. Existe gente querendo fazer mais e melhor. Sempre houve. Mas precisamos levantar a voz para, daqui alguns anos, não querermos varrer nossa história para debaixo do tapete.

Quero fazer parte da história, mas fazer parte do lado que fez a coisa certa. Quero fazer parte do que Deus está fazendo.

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